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Voltar | FundoJustificação acerca do sufrágio inerente #cantoes
Sun, Oct 20 2019 21:32h - by eksffa
Uma pergunta acusatória me foi confrontada na última semana sobre “this f*** inherent democracy, again!”, quando do Road Show expondo a idéia acerca dos cantões brasileiros. Creio que tanto a crítica quanto o incômodo do interlocutor era justificada, e como houve uma aparente aceitação satisfatória de minha resposta, tomei um tempo para transcrever um pouco mais a razão.
Justificação dos votos de 2/3 dos Cantões
Em Habermas[1], quando encontramos a comunidade comunicativa já formada e estabelecida que outrora tenha tomado decisões importantes e aceitas naquele mundo da vida, há uma compreensão na esfera acerca da qual, sujeitos alcançam um entendimento sobre as outras esferas do sistema social, pela via de processos comunicativos, processos discursivos simples ou em estruturas dialéticas mais complexas (podemos compreender aqui o engajamento axiomático discursivo rothbardiano ou a ética argumentativa hoppeana, a justificação dialógica em van Dun), ou ainda mais complexos em debates estruturados e submetidos à regras e jugos, dentro ou fora do curso do discurso perfeito.
Em Rawls[2] a legitimação democrática do poder deve partir do conceito de liberdade individual, ou de liberdade negativa, na acepção de Kant - o que de certo modo se alinha com a compreensão de direito negativo em Bastiat - tem que a promoção da Lei como forma de previnir antes de mais nada a injustiça. É resguardado o limite do uso coletivo da força, sem jamais extrapolar tal uso da força em ações além daquelas as quais cada indivíduo já promoveria, afim de evitar injustiças contra sua Pessoa.
Tal princípio da liberdade negativa em Rawls é destacada quando “(…) cada pessoa deve ter um direito igual à maior liberdade possível compatível com uma liberdade similar a dos demais", o que seguiria em apontar "que o esquema de cooperação social deve ser estável, deve estar de acordo com regras básicas aceitas voluntariamente”. Habermas apontará então que "os procedimentos democráticos não retiram sua força de legitimação, apenas, nem predominantemente, da participação política, mas antes do acesso ao processo deliberativo, cuja estrutura fundamenta uma expectativa de resultados racionalmente aceitáveis”.
Ainda em Habermas em tendo estabelecido compreensão comunicativa prévia acerca de decisões não participativas, e em sendo tais decisões tomadas por uma razoável maioria, a compreensão sobre o que os ausentes outrora acordaram deve ser considerada. Esse é o ponto chave onde as formas de democracia costumam divergir, em especial é uma distinção inerente entre a democracia direta e a representativa, a democracia pura e a qualificada.
Como David Dürr[3] coloca, a ausência dos indivíduos no rito do sufrágio, tende a representar significado distinto quando as decisões são tomadas em estruturas sociais pequenas e locais, de quando são decisões amplas, em escalas maiores onde os indivíduos afetados não interagem cotidianamente. Quanto mais distante da realidade local, menor interesse participativo. Tais ausências intencionais, seja em um sufrágio em praça pública, seja por meio de urnas, em forma eletrônica, em segredo, ou com o assentir com as mãos, podem significar tão somente duas coisas, que “quem cala, consente” ou “quem cala, rejeita”.
De tal forma, se cada pessoa deve ter um direito igual à maior liberdade possível, compatível com liberdade similar a dos demais (Raws), se os procedimentos democráticos retiram sua força de legitimação do acesso ao processo deliberativo racional (Habermas), se estabelecida razoável maioria, se previamente estabelecido que a ausência de um indivíduo no rito do sufrágio não presume consentimento mas sim, rejeição ou desinteresse ao proposto (Dürr), e considerando que os incentivos praxeológicos no ser humano são guiados primariamente pelo auto-interesse e maior satisfação (Mises) e pela razão objetiva do egoísmo virtuoso (Rand), temos nossas premissas para uma proposta sufrágica.
Tal compreensão sobre o real significado da não participação no rito da escolha toma, na proposta dos para os cantões, o ajuste de 2/3 dos votos necessários para aprovações das decisões, alinhado à razoabilidade da maioria apontada por Habermas, e assume a condição de “quem cala, rejeita” por padrão, de modo que as decisões não serão aprovadas se mais de 1/3 dos residentes, enquanto indivíduos auto-determinantes, demonstrarem rejeitar a proposta, quer seja pela expressão do voto em contrário, quer seja pela ausência na cerimônia.
Mas, se democracia é antítese da liberdade, e ainda que decisões tomadas por uma razoável maioria, e ainda quem em uma razoável estrutura de democracia pura e direta, o que impede que em escala, ainda tenhamos duas pessoas tomando decisões para cada três, e portanto uma em cada três pessoas - ou um grau similar - potencialmente tendo suas liberdades suprimidas pela vontade de outros?
As decisões, por sufrágio, sempre respeitarão os pilares da não iniciação de agressão contra a Pessoa, a Propriedade [e à sua integridade psicológica]. Quando tais normas fundamentais não forem suficientes para que os indivíduos residentes em um cantão vivam sua vida em paz, e as valorações morais outras forem incompatíveis com as suas, o que impede que a democracia não se apresente novamente como um falso Deus? Nada, de fato; não há essa garantia.
Esse é o problema inerente da demo-cracia e nós não o ignoramos ou empurraremos para baixo do tapete. A proporcionalidade de 2/3 que apesar das considerações e contribuição de Durkheim, Pareto e outros pensadores, parece arbitrária, também não será empurrada para baixo do tapete em nossa proposta.
Embora compreendamos que na vida real, os incentivos econômicos e sociais promovam um certo grau de aceitação de valores sociais e morais incompatíveis com os de cada indivíduo, e que mesmo diante da real oportunidade de viver sob anarquia ou sob poliarquia, tais incentivos poderiam promover uma inclinação maior à continuar participando daquela sociedade de leis privadas. Nos parece que a evidência empírica de aceitação de um grau de minarquia ou coisa parecida, mesmo para os indivíduos que mais anseiam por liberdades absolutas, se apresenta nas experiências objetivas da realidade ao analisarmos, por exemplo, que em Lietchstein, onde, apesar de todas as condições para absoluta secessão de vilas e pequenas comunidades existirem, de fato os incentivos para continuar participando de pequenas municipalidades e sob termos de auto-determinação locais, ainda que em uma estrutura de cidade-estado muito pequena, tais incentivos em continuar fazendo parte daquela estrutura social existente tem sido maiores que os incentivos em se dissociar. O mesmo parece acontecer com ainda mais frequência na região independente de Friuli-Venezia Giulia, na Itália, onde a fragmentação e descentralização da autonomia dos inúmeros territórios que compõe a região de FVG, somado a predisposição típica dos italianos (compatível com a dos latinos) em se engajar em longas e apaixonadas discussões, parece ser um diagnóstico ainda maior que os incentivos a se dissociar de estruturas sociais já relativamente pequenas, são baixos.
No entanto para todos os outros casos, ainda que sejam casos onde as exceções servirão ao nobre propósito de validar a regra, a garantia adicional que os cantões podem oferecer é, quando tais incentivos não forem mais suficientes para manter uma parcela dos indivíduos naquela sociedade, a liberdade será alternativa à aquelas decisões tomadas, as quais não foram ou não são mais consentidas. Nos cantões, tal liberdade se dá na possibilidade de criação de um novo cantão à partir de uma estrutura federativa existente, inclusive à partir do cantão atual. Essa cláusula de saída permitirá a auto-determinação de fato, e a revogação ou modificação dos termos de engajamentos sociais e econômicos voluntários. É a possibilidade de uma remoção física auto-determinada, a alternativa de liberdade frente à qualquer outra imposição, nos mesmos termos de formação do próprio cantão, e, em última instância, até a secessão de fato.
De tal forma embora haja uma estrutura de sufrágio democrático direto ainda que seja uma proposta de democracia pura - e portanto, esperançosamente menos suscetível à deturpações e corrupções - a alternativa necessária a tal mundo possível, onde os incentivos em participar são menores que não participar, é a cláusula de saída em forma da auto-determinação daqueles indivíduos donos de sí e de seus recursos: um novo cantão, numa estrutura social ainda menor, onde as menores minorias, os indivíduos, will narrow down os valores morais comuns entre sí, enquanto determinam critérios para continuar se engajando apenas quando por anseio voluntário, e sob seus próprios termos, com as demais comunidades comunicativas, sociais econômicas.
[1] HABERMAS, J. Droit et Democratie, 1997
[2] RAWLS, J. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1971
[3] DÜRR, David, Staats-Oper Schweiz, 2011
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